27 janeiro, 2012

Horário de trabalho

Badum Badum Bum, rápida sucessão de acordes límpidos de guitarra eléctrica, o estremunhar sentido de uma voz adolescente à procura do sentimento certo. Do meu andar já batem as seis horas. Tempo de sair. Só eu e a chefe, como de costume. Levo as mãos à fronte e massajo-a. Deixo-me ficar assim durante uns bons três minutos. Na escuridão, percebo o escritório de outro modo. A leve radiação emanada dos computadores faz vibrar o ar, deformando a atmosfera; a porta de madeira reforçada fragiliza-se com os ventos fortes de início da noite; ideias correm pelo chão, mas acabam por bater no caixote do lixo, depois atropeladas por frustrações, necessidades, génio, carácter e idiossincrasias várias. Reviro os olhos, ainda com eles fechados, tentando obter uma escuridão mais densa. Abro a cancela da minha disposição e absorvo o ritmo obsceno da banda que tocava no piso térreo.
- Lembras-te quando um dia também tivemos uma banda?
- Lembras-te quando um dia também tivemos uma banda?
- Deviamos voltar a tocar qualquer coisa...
- Deviamos voltar a tocar qualquer coisa...
- Minha querida.
- Minha querida.
A acústica do espaço já não era a mesma. Os pingos de chuva que ameaçavam a tranquilidade da noite, imiscuiam-se pelos buracos do telhado e batiam com um estrondo horrível no soalho.

10 janeiro, 2012

Choque de gerações

Como dizia o senhor Z, «Antes cavalo que burro!». Era assim que relativizava os seus problemas de raciocínio - comparando-se com um burro de carga sempre dava para aumentar a auto-estima. Tendo-se em alta conta, formulava teorias sobre andar de barco e andar metro, sendo a primeira opção a sua favorita, é que se só tivesse um sítio onde desembarcar, seria bastante fácil de chegar ao seu destino, para além disso podia-se deixar conduzir pelo resto da multidão que seguia pelos mesmos caminhos, não havia que enganar.
No início ainda perguntava, «este vai para a capital?", ao que as pessoas respondiam confusas que sim, já que só havia um percurso de A até B. O pior era uma vez lá, desenvencilhar-se e mover-se sozinho. De preferência incorporava a resistência do cavalo e seguia a pé até ao centro de emprego ou ao supermercado das melhores promoções, mais porque gostava de pisar e conhecer os sítios por onde passava. Porém, era frequente perder-se, e pedir por indicações não era o seu forte, principalmente porque tinha dificuldades em pronunciar Lidl (o de fazia-lhe comichão no palato, por estar entre um li e um le), mas também porque centros de emprego haviam muitos e a ele só servia um específico ao pé de umas macieiras, que é onde uma prima afastada trabalha e o pode atender com maior celeridade.
Resignava-se e acabava por apanhar o metro. «Lá tem de ser», pensava. O treino da tropa toldara-lhe o carácter, por isso nunca dizia que não a uma dificuldade que lhe aparecesse pela frente. Apanhara o jeito de andar de escadas rolantes, mas ainda mais importante era estar atento à voz feminina do metro. «Próxima estação, Filolidazentrempão», era como lhe soava se quisesse seguir para as compras, embora na maioria das vezes até acertasse. A outra era «Próxima estação, Bizomptuqueiras". Auto-censurava-se permanentemente por ter uma caligrafia tão bonita e nunca apontar o nome dos sítios num papel.

Cena 1

Uma dor na fronte, de cabeça, mas incidente, com força na testa, de onde saem as preocupações, os pensamentos presos, enjaulados, por causa de vozes penetrantes, características, do quarto ao lado, tipo trombones, que entram pelos ouvidos, dão trinta voltas em torno do cérebro e fixam-se na fronte, dissolvendo-se, desgastando.
Abro a janela, corre vento frio, atinge-me a cara sem piedade, mas as minhas expectativas saem frustradas, não levam nenhuma das dorzinhas, das pressões, são só minhas e o dia ainda vai a meio. Sonho com a hora de dormir e quando me deito não sonho com nada, só um quadro preto de absolutamente nada, uma espécie de morte de que me admiro todas as manhãs. Tomo banho, lavo os dentes, como uma torrada, vejo as notícias, saio à rua. O sol é lindo, o calor arrepia-me a pele, caminho durante hora e meia com o casaco no braço, porque afinal não foi preciso. As gaivotas cantam, as pessoas alegram-se com o que passa, a arquitectura manuelina levanta as saias complicadas e eu tiro uma fotografia para memória futura, nem há necessidade de Photoshop, porque ainda que estivesse rebentada, seria sempre o momento que eu pari e da terra de onde eu venho não se fazem abortos.